Em um país onde os direitos da infância estão garantidos pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é alarmante constatar que milhares de meninas e meninos continuam sendo vítimas de uma das formas mais cruéis de violação: o abuso e a exploração sexual. O inimigo, muitas vezes, não está nas ruas — mas entre quatro paredes, dentro do ambiente doméstico, onde o silêncio se impõe e a dor se esconde.
Violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil
De acordo com dados do Disque 100, canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Brasil registrou mais de 82 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes em 2024. A maioria envolve meninas entre 10 e 14 anos, e o principal agressor é alguém conhecido da vítima — geralmente um parente, padrasto, tio, irmão ou vizinho.
A psicóloga clínica Ana Paula Mendes, especialista em traumas infantis, explica que “o abuso sexual infantil não é apenas um ato isolado, é uma violação contínua que destrói a autoestima, afeta o desenvolvimento emocional e muitas vezes silencia a vítima por toda a vida”. Ela afirma que o medo, a vergonha e a dependência emocional ou econômica da criança em relação ao agressor são os principais fatores que impedem a denúncia.
A casa como cenário de crime
A violência contra crianças é generalizada e afeta milhões de crianças.
Subnotificação: o silêncio que encobre a violência
A cada denúncia registrada, estima-se que ao menos nove casos não são comunicados às autoridades. A subnotificação é um dos maiores desafios no combate à violência sexual infantojuvenil. Por trás dos números oficiais, há uma realidade ainda mais cruel e invisível.
“O abuso sexual infantil é um crime silencioso. E esse silêncio é sustentado por uma cultura que, muitas vezes, desacredita a vítima, culpa a mãe, ou relativiza o comportamento do agressor”, afirma Carla Ferreira, promotora da Infância e Juventude no estado da Bahia. Segundo ela, o rompimento do silêncio depende de uma rede de proteção eficiente e de uma sociedade disposta a olhar para o problema com coragem.
As marcas do trauma
Letícia (nome fictício), hoje com 27 anos, sofreu abusos do padrasto dos 9 aos 14 anos. Só conseguiu falar sobre o que viveu após os 20, durante uma crise de pânico. “Durante anos achei que a culpa era minha. Que ninguém iria acreditar. Hoje sei que eu era só uma criança”, conta.
A história de Letícia é semelhante à de milhares de outras vítimas. O silêncio, imposto pelo medo ou pela manipulação do agressor, retarda a responsabilização criminal e compromete o acesso à reparação.
Como identificar e agir
Sinais como mudanças bruscas de comportamento, isolamento, regressão (como voltar a urinar na cama), queda no desempenho escolar, agressividade ou medo de determinadas pessoas devem ser observados com atenção. Esses podem ser indicativos de abuso, e não devem ser ignorados.
Ao suspeitar de um caso de violência sexual contra criança ou adolescente, a denúncia é obrigatória — mesmo que não haja certeza absoluta. Pode ser feita de forma anônima por meio do Disque 100, pelo Conselho Tutelar local, ou em delegacias especializadas. Também é possível acionar o Ministério Público e os serviços de saúde e educação, que são obrigados por lei a notificar suspeitas.
A responsabilidade é de todos
O 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, é um marco simbólico dessa luta. Mas a mobilização precisa ser diária, constante e articulada.
“Precisamos entender que o silêncio é cúmplice. Fingir que não vê é legitimar a violência. Denunciar é um ato de proteção, de coragem e de amor ao próximo”, conclui a psicóloga Ana Paula Mendes.
SERVIÇO – Onde denunciar:
Disque 100 – Central de Direitos Humanos (atendimento 24h, gratuito e anônimo)
Conselho Tutelar – em qualquer cidade do Brasil
Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente
Aplicativo Direitos Humanos Brasil (Android e iOS)